Porque é que Portugal não é viável.
Mesmo aqui ao lado e à vista de toda a gente, os nossos vizinhos elaboraram (no fim dos anos 70) o seu Livro Branco dos Transportes, o qual foi amplamente discutido e aprovado no parlamento espanhol. Seguiram-se os correspondentes programas sectoriais (desenvolvidos durante a década de 80) criando mercado, especializando engenharia e empenhando a indústria de construção. Era a Espanha a preparar-se, com todo o afã, para a sua próxima entrada na comunidade europeia.
As principais construtoras portuguesas constituíram então um agrupamento, designado Intercom, para se candidatarem aos milhares de milhões de pesetas dos concursos lançados para o desenvolvimento das infra-estruturas de transportes (para além dos trabalhos relativos aos Jogos Olímpicos de Barcelona e à Expo de Sevilha) em execução do lado de lá da fronteira. Nem uma adjudicação, ou melhor, uma subempreitada em Gibraltar foi o balanço dessa fracassada aventura que foi completamente ignorada pelo governo português. É conhecido o proteccionismo do mercado espanhol, com uma prática, aliás, em tudo semelhante à dos demais países europeus.
Mas as nossas construtoras, com a velha e conhecida cultura de preços de cartel, não tinham condições de competitividade e foi o que aconteceu. Ao invés, o governo espanhol comandou a reorganização das suas construtoras, assegurou-lhes músculo financeiro e lançou-as na conquista dos mercados português e latino-americano. Foi o que aconteceu e com o sucesso conhecido.
Mais alguns apontamentos recordando diferentes posturas da Espanha democrática (hoje oitava economia mundial) e do nosso país. Num abrir e fechar de olhos converteu-se um porto de pesca (Algeciras) no transhipment da península. Três dezenas de anos à volta de Sines, cometeu-se a proeza de atribuir, a um consultor externo, uma concessão através de decreto-lei. Com a mesma política comunitária, a Espanha converteu-se na terceira potência mundial de pesca e Portugal trocou a sua frota por automóveis topo de gama.
Depois de anos de intensa preparação, a Espanha lançou-se (em 1986) na construção da alta velocidade ferroviária no percurso Madrid-Sevilha a par dum programa calendarizado de migração da bitola ibérica para a standard (europeia). O presidente da Renfe até veio a Lisboa explicar os propósitos espanhóis. Não obstante, Portugal nada fez relativamente à bitola e lançou-se na aventura da modernização da Linha do Norte... em bitola ibérica. E, quando se decidiu (a meio da década de 90) pensar na alta velocidade, não tinha um único engenheiro que alguma vez tivesse tido contacto com projectos semelhantes. Mesmo assim houve o despudor de abrir concursosexigindo experiência na matéria e realização de trabalhos de, pelo menos,milhão e meio de euros!
Com um investimento da ordem dos 6000 milhões de euros remodelou-se profundamente Barajas, dotando-o com uma capacidade horária de 120 movimentos e processamento de setenta e cinco milhões de passageiros anuais. A saga da Ota é a que se conhece, mal se conseguindo uma capacidade de 70 movimentos e trinta e cinco milhões de passageiros, sem possibilidade de ampliação futura das suas instalações. A Espanha apetrechou-se com um poderoso instrumento (INECO-TYFSA) no domínio da consultoria especializada, da investigação e desenvolvimento e da cooperação internacional. Dispõe hoje de 1680 técnicos qualificados, dos quais 750 universitários. Já ganhou mercado no Brasil, Cabo Verde e Europa do Leste, para além da América Latina, em que está naturalmente implantado. Em Portugal e no âmbito das chamadas engenharias integradas, criou-se a Ferbritas e a Ferconsult. Esta permitiu (dado o seu estatuto) a entrada directa da engenharia espanhola para os projectos e fiscalização das obras do metro.
Mas as duas são essencialmente prateleiras dos partidos (com vocação de poder) no rotativismo das administrações ferroviárias. Finalmente, os governantes espanhóis foram quase sempre escolhidos entre profissionais e/ou académicos, profundos conhecedores do sector. De Portugal basta ler os curricula...
Em suma: o poder político nada aprendeu com a Espanha, nas últimas três décadas, entretido que tem estado com os negócios do centrão de interesses e na satisfação das respectivas clientelas na gestão pública...
O Ministério de Fomento espanhol logo que concluiu (através da INECOTYFSA) os estudos preliminares dum novo aeroporto de Madrid, em Campo Real, remeteu-o à comunidade madrilena alertando-a para a possibilidade de esta vir a perder 55.000 empregos e 4000 milhões de euros caso não entre em serviço, no horizonte de 2020, essa nova infra-estrutura. É que estudos prospectivos conhecidos apontam para a eventualidade de saturação dos complexos aeroportuários de Londres e Paris em tal horizonte e quando atingidos níveis da ordem dos 150 milhões de passageiros/ano. Daí aconselhar-se que a Espanha se posicione como plataforma de redistribuição do tráfego Atlântico para a Europa. Para o efeito, a reserva de 8466 hectares em Campo Real e a 25 km de Madrid permite a implantação dum sistema de cinco pistas (sendo uma reversível) e a ampliação para mais duas, com uma capacidade horária de 245 movimentos e o processamento de 150 milhões de passageiros. Para além das indispensáveis conexões rodoviárias, a linha AVE para Barcelona seria prolongada ligando Campo Real às estações de Atocha ou Chamartin. Do mesmo modo a linha 9 do metro. Espera-se assim que o aeroporto intercontinental (como lhe chamam) de Campo Real possa proporcionar a criação de 300.000 empregos (dos quais 230.000 na comunidade de Madrid), para além de incrementar o PIB bruto da Região em mais de 21.000 milhões de euros.
Ou seja, quando em breve for inaugurada a remodelação de Barajas, já se saberá o que irá seguir-se (nos próximos 25 anos) em termos de oferta aeroportuária da capital espanhola. Sem drama, sem estrangeiros, sem privatizações, sem project-finances, sem negócios de transparência duvidosa.
O que importa, pois, é reter o método de abordagem da questão, numa articulação do Ministério do Fomento com a Comunidade de Madrid a garantir seriedade política e rigor nas avaliações da viabilidade técnica, económica e ambiental. O que importa é fazer a analogia com a recusa de Rio Frio (ou Porto Alto, ou Alcochete) e a cooptação da Ota...
A nossa elite, vesga e roída de inveja, faz por não perceber que a visibilidade internacional de Durão e Guterres - mesmo que em contraponto com as suas fracas prestações internas - muito tem contribuído para a aposta americana em Portugal.
Seja como for, o certo é que Sócrates está perante um dilema com consequências profundas no futuro de Portugal. Tem de escolher sem hesitações entre o rigor e o MIT (por um lado) e a mediocridade e o negocismo por outro lado. Ou indica à juventude portuguesa o espírito de Bill Gates ou deixa-a na aprendizagem do saque público em que se convertem as nossas jotas. Ou pretende Livros Brancos redigidos de forma independente e competente ou entra numa de branqueamento que não leva a lado nenhum. Ou prepara políticas sectoriais sérias ou terá às costas uma gestão pública que acabará por cair de podre. Ou impõe nova relação dialéctica entre membros do governo, deputados e militantes ou não resistirá para além da legislatura.
Vamos ter três anos sem eleições. Tempo bastante para as reformas necessárias. Senhores, aprendam (pelo menos) com os espanhóis...
Conselheiro de Obras Públicas e Transportes (jubilado), ex-deputado da República pelo círculo de Lisboa